Um idoso na fila do DETRAN
Jornal do Brasil, 7/9/96
“O senhor aqui é idoso”, gritava
a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran
da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal "senhor".
Como ninguém protestasse, o policial abriu caminho para que o velhinho
enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.
O jornal tem recebido muitas cartas elogiando e outras criticando aquele
departamento de tão má reputação. Afinal,
melhorou ou não o serviço? Cheguei a pensar em sugerir à
editoria de Cidade que mandasse fazer uma daquelas matérias em
que o repórter desse o seu testemunho. Simularia tirar uma carteira
e assim desfaria as dúvidas.
Agora, ali, no posto da Gávea, esperando a minha vez, eu me sentia
fazendo as funções desse repórter, e tudo começava
bem. A operação toda não demorou nem meia hora e
eu já ia aplaudir o atendimento, quando, ao lado da boa notícia
- aprovação no exame de vista - me deram uma má:
teria que ir à Avenida Presidente Vargas para pegar a carteira.
Foi assim que acabei assistindo àquela confusão de que falei
no início. Aliás, não só assisti como dela
participei: o “idoso” que a dama solidária queria proteger
do empurra-empurra não era outro senão eu.
Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha
me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para
a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos “enta”;
dos 50, quando, deprimido, se sente que jamais vai se fazer outros 50
(a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando
um eufemismo diz que a gente entrou na "terceira idade". Nunca
passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem, um outro
marco aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado,
tão cedo, de "idoso", ainda mais numa fila do Detran.
Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo.
Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: “idoso é
o senhor seu pai”. O que mais irritava era a ausência total
de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha
tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se
nem pediu pra ver minha identidade? E o guarda paspalhão, por que
não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que
era tão evidente assim?
Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando
ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando
com a massa gritando, revoltada: “esse coroa tá furando a
fila! Ele não é idoso!
Manda ele lá pro fim!” Mas que nada, nem um pio.
O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de
que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima - do tempo. Me
lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: “Isso é
uma sacanagem comigo”, me disse, “eu não mereço”.
Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária
reagira assim: “Mas ninguém lhe dá isso”. Respondi
que, em matéria de idade, o triste é que ninguém
precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo
da linda jovem. Ali na porta do Detran nem isso, nenhuma alma caridosa
para me “dar” um pouco menos.
Subi e a mocinha da mesa de informações apontou para os
balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: “Gestantes,
deficientes físicos e pessoas idosas”. Hesitei um pouco e
ela, já impaciente, perguntou: “o senhor não tem mais
de 65 anos, não é idoso?”
- Não, sou gestante - tive vontade de responder, mas percebi que
não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou
estava prestes a amamentar alguém. Saí remungando: “não
tenho mais, tenho só 65 anos”.
O ridículo, a partir de uma certa idade, é
como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa
de um mês, de um dia. “Você nasceu no dia 14, eu sou
do dia 15”, já ouvi essa discussão.
Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar
quem me faz companhia nesse triste transe. Aí, se não me
falha a memória - e essa é a segunda coisa que mais falha
nessa idade - me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam
sentados ali comigo. Por associação de idéias, ou
de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre
companheiros de geração, há um respeitável
time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão
quase não entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Francis, Evandro Carlos,
Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos, Barreto, Armando e Figueiró
já andam de graça em ônibus há um bom tempo).
Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou outro - de ano,
meses ou dias - e eles vão ficar bravos. Mas não perdem
por esperar: é questão de tempo.
Ah, sim, onde é que eu estava mesmo? “No
Detran”, diz uma voz. Ah, sim. “E o atendimento?” Ah,
sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas,
mesmo sem entrar em fila, passa-se um dia para renovar a carteira.
Por via das dúvidas, acho melhor o jornal mandar
um repórter não-idoso fazer a matéria.
Zuenir Ventura.
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