Um
milagre
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Graciliano Ramos
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R28829. Anúncio miúdo publicado num jornal: "A Nossa
Senhora, a quem recorri em momentos de aflição na madrugada
de 11 de maio, agradeço de joelhos a graça alcançada."
Uma assinatura de mulher. Em seguida vinha o 29766, em que se ofereciam
os lotes de um terreno, em prestações módicas. Esse
não me causou nenhuma impressão, mas o 28829 sensibilizou-me.
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A princípio achei estranho que alguém manifestasse gratidão
à divindade num anúncio, mas talvez Nossa Senhora nem tenha
lido, mas logo me convenci de que não tinha razão. Com certeza
essa alma, justamente inquieta numa noite de apuros, teria andado melhor
se houvesse produzido uma Salve-Rainha, por exemplo. Infelizmente nem
todos os devotos são capazes de produzir Salve-Rainhas.
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Afinal essas coisas só têm valor quando se publicam. A senhora
a que me refiro podia ter ido à igreja e enviado ao céu
uma composição redigida por outra pessoa. Isto, porém,
não a satisfazia. Trata-se duma necessidade urgente de expor um
sentimento forte, sentimento que, em conformidade com o intelecto de seu
portador, assume a forma de oração artística ou de
anúncio. Há aí uma criatura que não se submete
a fórmulas e precisa meios originais de expressão. Meios
bem modestos, com efeito, mas essa alma sadudida pelo espalhafato de 11
de maio reconhece a sua insuficiência e não se atreve a comunicar-se
com a Virgem: fala a viventes ordinários, isto é, aos leitores
dos anúncios miúdos, e confessa a eles o seu agradecimento
a Nossa Senhora, que lhe concedeu um favor em honra de aperto.
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Imagino o que mulher padeceu. A metralhadora cantava na rua, o guarda
da esquina tinha sido assassinado, ouviam-se gritos, apitos, correrias,
buzinar de automóveis, e os vidros da janela avermelhavam-se com
um clarão de incêndio. A infeliz acordou sobressaltada, tropeçou
nos lençóis e bateu com a testa numa quina da mesa da cabeceira.
Enrolando-se precipitadamente num roupão, foi fechar a janela,
mas o ferrolho emperrou. A fuzilaria lá fora continuava intensa,
as chamas do incêndio avivam-se. A pobre ficou um instante mexendo
no ferrolho, ataratanda. Compreendeu vagamente o perigo e ouviu uma bala
inexistente zunir-lhe perto da orelha. Arrastando-se, quase desmaiada,
foi refugiar-se no banheiro. E aí pensou no marido (ou no filho),
que se achava fora de casa, na Urca ou em lugar pior. Encostou-se à
pia, esmorecida, medrosa da escuridão, tencionando vagamente formular
um pedido e comprimir o botão do comutador. Incapaz de pedir qualquer
coisa, arriou, caiu ajoelhada e escorou-se à banheira. Depois lembrou-se
de Nossa Senhora. Passou ali uma parte da noite, tremendo. Comos os rumores
externos diminuíssem, ergueu-se, voltou para o quarto, estabeleceu
alguma ordem nas idéias confusas, endereçou à Virgem
uma súplica bastante embrulhada.
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Não dormiu, e de manhã viu no espelho uma cara envelhecida
e amarela. O filho (ou marido) entrou em casa inteiro, e não foi
incomodado pela polícia.
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A alma torturada roncou um suspiro de alívio, molhou o jornal com
lágrimas e começou a perceber que tinha aparecido ali uma
espécie de milagre. Pequeno, é certo, bem inferior aos antigos,
mas enfim digno de figurar entre os anúncios do jornal que ali
estava amarrotado e molhado.
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Realmente muitas pessoas que dormiam e não pensaram, portanto,
em Nossa Senhora deixaram de morrer na madrugada horrível de 11
de maio. Essas não receberam nenhuma graça: com certeza
escaparam por outros motivos.
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